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Como criar um lago

Sou permacultora e acho que a obra mais importante de uma pessoa que resolve abraçar esse estilo de vida/ciência de design ecológico/arte/ideologia/paixão é o lugar onde se vive. A criação do lago foi mais um passo para tornar minha morada um espaço realmente vivo.

Se você não conhece a permacultura ainda, saiba que essa palavra surgiu no início dos anos 70, quando os australianos Bill Mollison e David Holmgren pesquisavam alternativas para a criação de sistemas agrícolas permanentes (permanent agriculture = permaculture). Ou seja, formas de cultivo que jamais exaurissem a terra e não dependessem de insumos externos. Os permacultores estão espalhados por todo o mundo, inclusive no Brasil, onde há uma rede bastante ativa. A permacultura se expandiu para além da agricultura e passou a englobar outras áreas, como manejo de água, captação de energia, bioconstrução e relações comunitárias. O termo hoje pode ser traduzido como “cultura permanente”, ou seja, como habitar um território melhorando as condições para quem virá depois. A ética dos permacultores se baseia em três propostas muito simples de falar e complexas de praticar na nossa sociedade: cuidar das pessoas, cuidar da natureza, partilhar os excedentes.

Além de me dedicar de corpo e alma ao plantio, ao longo dos anos fui me especializando em criar maneiras de aproveitar e reaproveitar ao máximo a água. Também escolhi ser cobaia da permacultura, o que inclui os percalços do pioneirismo. Em 2014, auge da crise hídrica, instalei uma cisterna em casa. Escolhi um modelo de plástico enorme, de uma marca australiana recém-instalada no Brasil. A minha foi uma das primeiras cisternas brasileiras dessa firma, que evito falar o nome. Pouco tempo depois começou a vazar e a empresa não ofereceu nenhuma garantia, assistência técnica ou possibilidade de conserto. Convivi com remendos temporários até que rachou de vez. Em 2020 decidi reconstruí-la com tijolos e cimento. Mais um processo complicado em que aconteceram vazamentos, refações e rachaduras. Até que a cisterna foi consertada e, espero, vai durar uns 100 anos.

Observando a água que saía pelo ladrão nas épocas de chuva, percebi que com um lago poderia aumentar minha capacidade de armazenar água e ao mesmo tempo criar uma área de microclima de frio e umidade. O principal motivo para criar o lago foi a preocupação com o fato de estamos vivendo um cenário climático adverso, em que ondas de calor e estiagens tendem a se tornar mais frequentes e intensas. Não gosto de ar condicionado e acho que não é essa a solução mais ecológica ou resiliente. Reparei que, nos lugares do mundo ondem acontecem anomalias meteorológicas, as interrupções no fornecimento de água e energia são muito comuns. Com 11 metros de comprimento, um metro de largura e cerca de 40 cm de profundidade, o lago se tornou um oásis aqui em casa, que junta estoque extra de água, habitat para microfauna, refúgio para relaxar e refrescar.

O tal descarte de água da cisterna acontecia num canto sombreado, pouco utilizado, sem possibilidade de cultivo de horta. Um corredor lateral entre a casa e o muro, na face sul, justamente a mais fresca. O local estava escolhido e o momento de fazer a obra também: a época da estiagem. Agora faltava encontrar alguém para realizá-la.

Convidei o Reginaldo Almeida por sua experiência em projetos aquáticos com o engenheiro-permacultor Leo Tannous, que fez o desenho da minha cisterna de alvernaria. Mas Reginaldo nunca tinha construído um lago. Nem eu. A primeira fase foi cavar, cavar, cavar. Tomamos o cuidado de deixar uma faixa de 20 cm de terra entre a borda do lago e o muro, assim não tem como o vizinho nos acusar de estar causando infiltração. Em vez de chamar uma caçamba para mandar embora toda aquela terra, pedi que fosse amontoada num canto do jardim. Não ficou nada bonito nem chique, mas como agricultora sei que solo é a coisa mais preciosa do mundo. E aí a mágica começou a acontecer: minha horta está linda como nunca. Com a terra da escavação do lago, consegui aumentar a altura dos canteiros e, com isso, as raízes das plantas ganharam mais espaço para se fixar. Sim, meus canteiros são no chão de terra do quintal e, em teoria, as raízes podem aprofundar indefinidamente. Mas as plantas gostam de solo rico em matéria orgânica e muito fofinho, então não penetram bem em solo compactado.

Voltando ao lago, a obra começou em junho de 2021 e logo na primeira semana agradeci aos céus não termos feito um projeto. Na minha cabeça, seria algo menor. Reginaldo e seus ajudantes, com a cavação toda, ampliaram o potencial do lago. Outro detalhe: apareceram as sapatas (alicerces horizontais) do muro, que não constavam nas plantas arquitetônicas da casa e não podem ser removidas. De nada adiantaria um desenho bonitinho. O lago teve que incorporar as sapatas.

Eu não tinha pressa. Um dos princípios da permacultura é “Mudanças pequenas e lentas”. Reginaldo foi encaixando nosso lago entre outros trabalhos, o que me deu tempo de pensar e ir avaliando passo a passo. Depois de tudo cavado veio o momento de cobrir o solo com manta de drenagem. É um produto que eu detesto e não uso nos meus vasos (para o plantio, pedaços de roupas esfarrapadas de algodão são muito melhores), mas topei porque não queria riscos. A função disso é ficar embaixo da geomembrana (um tecido de plástico grosso específico para impermeabilizar lagos). Sem essa camada impermeável, a terra iria chupar toda a água do lago. A fixação e adaptação da geomembrana ao contorno do lago foi muito bem feita pelo Reginaldo. E aprendemos com nossa calma que, ao pegar um pouco de sol e calor, o material fica mais flexível e fácil de moldar às reentrâncias, sem comprometer a função de estanquear.

Próxima etapa: instalar filtros e bombas. Aqui foi a roubada da obra. Não precisava de nada disso, mas eu não tinha certeza absoluta de que as plantas e os peixinhos dariam conta de manter a água limpa e livre de larvas de insetos. Fui na onda das orientações da engenharia convencional e entrei pelo cano. Gastei uma grana desnecessária e rolou um trabalho desnecessário. Os equipamentos estão novíssimos. Foram ligados apenas para testar e agora quero vendê-los pela metade do preço para ficar livre. Aqui vai a lista: Pressurizado 6000, Pressurizado 4000, Bomba Beluga 22000 220v, BombaOrca 15000 220v, Ozônio Enamel, Venturi. Isso tudo acho que é útil para piscinas e lagos sem plantas e peixes comedores de larvas. Se você conhece alguém que quer fazer um bom negócio, me avise!

A finalização do lago foi colocar areia no fundo e pedras. Nesse momento rolou um dilema ético. Descobri que em São Paulo vende-se pedras enormes e areias lindas retiradas do interior do Brasil. Deu vontade de desistir diante desse cenário predatório. Mas comprei as pedras e a areia. Minha filha ficou brava comigo. Eu argumentei que essa seria a primeira e última vez na vida e avisei que tanto as pedras quanto a areia serão herança dos meus filhos quando eu morrer. Pretendo viver nessa casa o resto da minha vida, se for possível. Caso eu tenha que mudar, quero ir para outro local onde possa fazer um lago. E vou levar as pedras e a areia.

Para terminar mesmo, Reginaldo fez a instalação do Flow Form na saída descarte do filtro da cisterna (a água que não entra no reservatório). Não é algo indispensável, mas Flow Form são estruturas lindas que fazem a água dançar e, como cobaia da permacultura, eu queria oferecer esse mimo para o lago. Quer saber mais sobre Flow Form? Ouça Paul Van Dijk: https://www.youtube.com/watch?v=zNYkAv-ccXw. Há um outro cano que traz a água excedente da cisterna, o ladrão, para dentro do lago. Nos momentos de chuva forte, vira uma cachoeira.

Você acredita que no dia seguinte de tudo montado, em outubro, a longa estiagem de São Paulo acabou? Choveu e o lago começou a encher lindamente. Mas aí a empresa que vendeu os equipamentos desnecessários deu uma orientação errada para o Reginaldo. Os “técnicos” explicaram que um lago não pode ter água de chuva e que o nível de um lago tem que ser sempre o mesmo, sem variações. Aí eu perdi a paciência com a empresa e falei para o Reginaldo que me responsabilizava pelos “danos” que a água de chuva pudesse fazer. Óbvio que isso é uma explicação absurda. O lago está cheião, lindo, com PH perfeito (entre 6,8 e 7,2 – comprei os reagentes para monitorar) e os equipamentos desnecessários desligados. Mas a engenharia convencional infelizmente ainda não sabe lidar com as soluções baseadas na natureza…

Aqui vou fazer uma pausa para contar uma história ocorrida em 2006, quando a casa onde eu moro estava na fase do projeto. Eu ainda não conhecia a permacultura (entrei nesse mundo em 2010), mas queria um sistema de captação de água de chuva. O engenheiro já estava contratatado e, em uma das reuniões, quando fiz essa solicitação a resposta foi: “Não dá para captar chuva em São Paulo porque é tão ácida que vai corroer as louças sanitárias”. Não havia como demitir o cara, a obra estava em andamento e eu percebi que a resposta insana era porque ele não sabia trabalhar com captação de água de chuva e queria me fazer desistir. O que eu disse na hora foi: “Fulano, eu não sou burra. Essa explicação não faz sentido e nós nunca mais vamos conversar”. Fiquei sem a cisterna naquele momento. Nunca mais conversei com a pessoa nem pronunciei seu nome.

Esses dois causos servem para exemplificar o fato de vivermos sob as verdades de uma engenharia anacrônica e inimiga da natureza. Vejo isso também na escala macro das obras governamentais. Em geral são escolhidas as técnicas mais caras, complicadas, poluidoras e destruidoras de ecossistemas. Que as próximas gerações de profissionais mudem a história. Por enquanto, ainda vivemos um certo apagão de mão de obra permacultural. Há muitos cursos no mercado mas ainda poucos permacultores com experiência e desejo de transformar os lindos conceitos em ambientes no mundo concreto.

De volta ao lago, quando a água começou a preenchê-lo, logo fui atrás de peixes, pois sei que o tempo entre a colocação dos ovos de Aedes e o nascimento de mosquitos é de no máximo 10 dias. Peguei algumas plantas aquáticas excedentes das cacimbas da Horta das Corujas e também trouxe de lá alguns dos abundantes guarús (barrigudinhos) e lebistes. São peixes de no máximo 3 centímetros, mas muito gulosos, que acabam com as larvas. Criar o ecossistema no lago foi muito fácil por causa da minha experiência de 10 anos na Horta das Corujas. Lá nós cavamos as cacimbas (assunto para outro post), povoamos com plantas aquáticas e garantimos a ausência do Aedes com os peixinhos.

É incrível como, na nossa sociedade, as pessoas confiam em venenos e desconfiam das soluções naturais. Até alguns anos atrás muitas vezes os vizinhos da Horta das Corujas denunciaram as cacimbas por acharem que eram criadouros de mosquitos. Teve uma época que agentes da vigilância sanitária iam inspecionar quase todos os dias por causa de denúncia. E saíam nos elogiando muito pelo controle biológico. Com o passar do tempo, a vizinhança aprendeu que as cacimbas na verdade são armadilhas de Aedes. Os ovos são rapidamente consumidos pelos peixes. Assim os mosquitos não proliferam nem transmitem doenças. Mas somos sempre vigilantes. Há um tempo encontrei criadouros nas pequenas poças que se formavam nos postinhos da cerca. E fui lá preencher com areia uma por uma. Agora temos uma cerca nova que não oferece esse risco. Também houve um momento em que, por alguma razão, os peixinhos de uma das cacimbas sumiram. Um dia fui buscar água para regar e vi centenas de larvas na água. Decidimos experimentar o controle biológico. Então peguei peixinhos de outras cacimbas para repovoar e, em 36 horas, todas as larvas tinham sido devoradas.

Mas deixa eu focar no lago de casa… Bom, a manutenção é facílima, silenciosa e sem custo. Os equipamentos desnecessários (e à venda!) estão desligados então não há gasto de energia. Os peixinhos estão saudáveis e felizes comendo larvas e plantas aquáticas, então não preciso comprar ração. O cardume é menor do que na Horta das Corujas provavelmente por falta de alimento. O que é boa notícia: estão sempre em busca de larvas. Mas não se preocupe porque não sofrem. Aprendi que os peixes autorregulam suas populações de acordo com o alimento disponível. O único delicioso trabalho que dá é entrar no lago nos dias de calor para retirar o excesso de plantas aquáticas e colocá-las como cobertura de solo sobre meus canteiros. Quando chove demais, o lago transborda por um ladrão que dá para uma parte cheia de plantas onde instalei três jardins de chuva. Assim vai infiltrando lentamente no solo e alimenta o lençol freático. Jardins de chuva são buracos com vegetação que sobrevive a algumas horas de submersão, feitos para armazenar temporariamente a água da chuva. Instalados aos milhares, resolveriam enxurradas, enchentes e deixariam nossas cidades mais verdes e nossos rios mais limpos e volumosos (porque alimentam o lençol freático).

Estou apaixonada pelo meu lago, a cada dia mais lindo. As plantas do entorno estão crescendo e a presença de passarinhos, borboletas, abelhas e libélulas em casa aumentou muito. Junto com a horta, o lago faz da minha casa um oásis. Olhando lá do céu, parece um rio, por ser comprido e estreito. Estou conseguindo oferecer um lugar para muitas vidas beberem água, se alimentarem, repousarem e se reproduzirem dentro desse deserto de asfalto e cimento que é São Paulo. Fiquei tão animada que acabo de criar um filhote do lago na horta da parte da lage, que é um lugar bem mais seco e quente. Vedei as saídas de um vaso enorme de cimento e estou deixando a chuva encher. povoei com peixes e plantas.

Todos os dias acordo de manhã e vou dar bom dia para os bichinhos voadores e os peixinhos. Agradeço a oportunidade de ter criado esse lago, que me faz tão feliz.

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